Arquivo da tag: início

Saudosista

Ah, é difícil ficar tanto tempo longe de casa e nem se lembrar mais que se tem um lar. Ao mesmo tempo em que se respira novos ares, conhece-se novas coisas, novos lugares, novas paisagens, há aquela tristeza que, por mais que seja rechaçada, insiste em timidamente voltar a cutucar o peito, vez ou outra. É por isso que por mais que por mais que a viagem esteja boa, “o bom filho a casa torna”.

Foi o que eu fiz. Parti, rompi laços que já eram estreitos até demais, e me prendiam quando eu menos esperava, me arrastando por horas e horas a fio para lugares-comuns do meu mundo comum. Subitamente desisti daquilo tudo e vivi meu tempo livre de uma forma nova. Nova, mas tão claustrofóbica quanto a anterior, como rapidamente descobri.

E assim, com o passar dos dias, a tal tristeza veio a me cutucar, coincidindo com a rotina que eminentemente anunciava sua volta iminente. Essa tristeza tímida virou saudade, a saudade se tornou realidade, e a realidade me trouxe aqui mais uma vez para colocar tudo nos conformes e dar início a um novo ciclo que começa agora. E sabe-se lá onde vai parar.

O importante mesmo é que eu estou de volta, lamentando o tempo que perdi, porém reconhecendo as experiências que acumulei para, uma vez mais, recomeçar. Vamos lá.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte IX

Nada daquilo fazia o menor sentido. Por mais que o garoto não tivesse encontrado, na sua busca extensiva e desesperada pelo banheiro, qualquer sinal que corroborasse com sua teoria de perseguição, ele não poderia se dar por vencido, já que a música continuava a tocar, independentemente dos seus esforços em entendê-la em todos seus aspectos.

Ficou o dia inteiro pensando em como acabaria com aquele problema que tanto lhe atormentava, e há tantas noites. Várias ideias lhe passavam pela mente, mas nenhuma que realmente pudesse ser posta em prática. Até que alguma coisa razoável lhe ocorreu. Ao invés de deixar a melodia ir até ele, como todos os dias ela ia, o rapaz faria o contrário.

Era isso. Iria à raiz do problema, enfrentar suas dúvidas e esclarecer aquela situação tão estranha de uma vez por todas. Descobriria, o mais rápido possível, de onde a música vinha e até ela se dirigiria, para enfim vencer uma batalha, mais do que com a origem da melodia, uma luta consigo mesmo.

Plano traçado em sua cabeça, o garoto, em vez de ir ao banheiro como havia feito durante todos aqueles dias, o que só resultaria em mais um tormento, vestiu-se e, sem que a mãe, já deitada na cama, visse, saiu de casa, atravessou o corredor, desceu as escadas e saiu do hall do seu prédio. Como que numa cruzada pela verdade, andou com passos pesados até o bloco atrás do seu, e disse ao porteiro que visitaria um amigo. Permissão para entrar concedida.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte VIII

Pronto. Era daquilo que ele precisava para que a teoria de perseguição que se formava a cada dia mais em sua mente se concretizasse. Aquela era a prova definitiva de que alguma coisa muito séria estava acontecendo ali, e agora o rapaz estava convicto em ir atrás dos culpados, descobrir quem o estava espionando, quem poderia ter feito algo tão terrível. Ele estava prestes a se perguntar como alguém teria entrado naquele banheiro quando deu uma segunda olhada no pequeno objeto preto que segurava com o indicador e o polegar.

Deu uma segunda, uma terceira, uma quarta, uma quinta olhadas, quantas fossem necessárias para que ele realmente visse o que queria. Pois aquele diminuto quadrado de cor escura não era nada mais nada menos do que um amontoado de poeira que se acumulara na parte da lâmpada que ficava para dentro do teto. Mas o garoto queria acreditar que era um chip, algum aparelho, não era possível que não fosse.

Ele não se deu por vencido, revirou ainda mais o banheiro, jogando roupas do cesto para todos os lados, remexendo os frascos de perfume e xampu do armário debaixo da pia e chegando a derrubá-los todos com as mãos meio trêmulas. Por fim, com o banheiro de cabeça para baixo, ele se sentou no meio da bagunça que havia feito e arfou com o esforço de tentar provar para si mesmo algo que não era real. Levantou-se e esmurrou uma única vez a parede, só para se sentar de novo e lá ficar por um bom tempo, vencido.

Todo o tipo de ilusão passava agora por aquela cabeça desilusionada com os próprios devaneios, e o garoto foi dormir em meio a gritos de sua mãe para que saísse de uma vez do banheiro. Ele arrumou o que havia feito e se deitou. Conseguiu dormir com a esperança de que tudo se apagasse no dia seguinte, de que aquilo nunca tivesse existido. A esperança foi em vão, pois, na noite seguinte, assim que seu pé pisou no primeiro ladrilho do granito escuro do banheiro, a música começou, mais uma vez, a tocar.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte VII

O garoto voltou correndo até a porta da sua casa, abriu-a, entrou e foi, a passos rápidos, até o banheiro, no qual entrou só para, mais uma vez e com uma frustração renovada acompanhando-a, ouvir a música que vinha atormentando-o já por dias a fio.

Vários dias já haviam se passado, e a música era sempre a mesma, mas muitas questões permaneciam no ar, ou melhor, na mente confusa do rapaz: de onde ela vinha? De onde ele a conhecia, já que ela parecia familiar? E o mais importante: como ela “sabia” quando ele entrava no banheiro? Aquilo era inconcebível.

No dia subseqüente àquele da ida ao corredor, o cérebro do garoto estava em nó e sua mente permanecia em dúbio solilóquio sobre o que poderia estar acontecendo. Ele foi ao banheiro já esperando ouvir a melodia usual, e assim aconteceu. Porém, desta vez especificamente, um pensamento mais claro lhe perpassou a cabeça.

Um pensamento claro, mas que poderia, muito bem, estar empurrando a mente já confusa para os limiares da sanidade. A tal ideia era de que poderia haver um sensor de movimento ali implantado, sabe-se lá como – o rapaz nem imaginou alguma pergunta além daquelas que já haviam se tornado um estorvo para ele, só agiu. Subiu na bancada de mármore, revirou cada canto do banheiro, em cima e embaixo de frascos, potes e do cesto de roupa, até que, mais uma vez em pé, agora equilibrado na privada, ele mexeu na lâmpada e foi aí que se deparou com aquilo. Ele estava sendo perseguido.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte VI

No dia seguinte acordou com dor de cabeça, mas de qualquer forma foi à aula. O rapaz dormiu pela tarde para recompensar a noite mal dormida e chegou a considerar a possibilidade de não ir ao banheiro naquela noite, mas ele foi, novamente em um horário diferente, e mais uma vez escutou a música que já o estava deixando louco.

Na noite do dia seguinte, parou debaixo da porta do banheiro, imaginando o que aconteceria se ele ficasse lá. Fechou a porta e se recostou contra ela. Ficou lá por alguns minutos até perceber que não obteria resultado algum. No exato instante em que pisou no chão de granito do banheiro, a música começou a tocar. Aquilo já estava passando dos limites.

Mais uma noite e mais uma tentativa de entender de onde vinha, o que era aquela música e porque ela tocava quando ele entrava no banheiro, assim decidira o garoto e assim seriam suas noites daqui para frente.

Por algum motivo, ele decidiu ir pelo corredor do prédio até o ponto paralelo ao banheiro para ver se a música tocava da mesma maneira. Havia vestido o pijama no quarto, e assim mesmo foi andando pelo corredor, arrastando os chinelos pelo chão que parecia permanentemente encardido. Nada aconteceu quando atingiu a altura do banheiro de sua casa. Só o silêncio habitual da noite.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte V

Um alívio tremendo tomou conta dele quando lá chegou e nada aconteceu. Parecia que a tormenta havia acabado, por mais insignificante que ela fosse. O garoto escovou seus dentes, e quando começou a lavar seu rosto… Música. E com ela mistério, espanto, certa agonia e mais alguns sentimentos misturados na cabeça dele.

Mas por que todo aquele alvoroço interno por causa de uma melodia qualquer? O menino olhava para seu reflexo no espelho, que mostrava um rosto com gotículas de água escorrendo por sua superfície, e não sabia dizer. O certo é que a inquietude começava a tomar conta de seus pensamentos, e ou ele consertava aquele problema ou tirava aquilo da cabeça. Sua resolução foi, novamente, pela segunda opção.

Sono, dia seguinte, aulas, afazeres cotidianos, lazer, ócio, refeições, noite. A parte do dia que começava a ganhar importância renovada na vida do garoto. E tudo isso por causa de uma música, que poderia muito bem estar tocando ocasional e randomicamente, coincidindo com seus horários de idas ao banheiro. Muito estranho, assim como o seria se não fosse ocasional, porém foi o que ele enfiou em sua própria cabeça.

Com esperanças de comprovar sua teoria, o rapaz foi ao banheiro naquela noite como em todas as outras. Para sua decepção, a música pôs-se a tocar, como nos dias anteriores, e atormentou-o e trouxe-lhe à memória os pensamentos mais escabrosos, o que não havia ocorrido nos dias anteriores. Nervoso com a perspectiva de estar errado e de tudo aquilo estar além de sua compreensão, o que não fazia sentido nenhum, pensava, colocou a escova em seu lugar, com raiva, sem nem escovar os dentes e meteu sua cabeça de cabelos revoltos no meio dos travesseiros, após retornar ao quarto.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte IV

Ora, o rapaz já havia se esquecido daquele som, mas agora ele voltara. E o que era mais estranho: em uma hora totalmente diferente daquelas três da madrugada habituais, das duas primeiras vezes em que ele ouviu o que pensou ser um alarme. Daí a surpresa tão grande. Porém, pensou ele, não fazia sentido se preocupar com aquilo, afinal era só uma música qualquer.

Mesmo se forçando a pensar assim, sua mente duelava contra sua vontade. Antes de dormir, ficou por meia hora imaginando o que seria aquilo, até que se deixou cair no sono e imergiu em sonhos que o levavam para bem longe dali. Acordou em cima da hora em que tinha de estar de pé, atrasado por aqueles devaneios da noite anterior.

Ansioso para que a noite logo chegasse, o garoto praticamente ignorou a passagem do dia, e ele realmente colaborou com seus desejos e passou mais rápido. Assim, veloz chegou o manto negro da noite cobrindo o céu azul para torná-lo quase preto, pontilhado de estrelas e com uma circunferência de brilho dourado, a lua, que iluminava a escuridão. Uma noite qualquer de lua quase cheia.

Após comer seu jantar, fazer um trabalho que havia procrastinado até o dia anterior à data de entrega e imprimi-lo, o rapaz decidiu-se por ir dormir. A razão para essa decisão era simples: o horário naquele dia era diferente do dia anterior, e ele esperava não ouvir a música, ou então entender melhor seu mistério. Como rotineiramente, pegou seu pijama e foi até o banheiro.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte III

Por dias, o garoto não dormiu mais naquele horário exato, mesmo tendo dormido em alguns dias mais cedo e em outros até mesmo mais tarde. Inicialmente, voltou à sua mente aquele pensamento de que poderia ser um alarme. Sabe-se lá do que a pessoa precisaria, mas era perfeitamente plausível.

Eventualmente, com o passar de uma ou duas semanas, toda aquela história de melodias estranhas na casa do vizinho do prédio ao lado ouvidas durante uma ida noctívaga ao banheiro sumiu da cabeça do garoto assim como havia entrado. Dois ou três dias bastaram para que ele não mais se lembrasse disso, e assim seguiu sua vida normalmente.

Porém, em um dia que parecia ser como todos os outros, uma coisa esquisita aconteceu. O menino fez tudo que tinha para fazer, entre afazeres escolares, domésticos, uma visita a algum amigo, jogos no computador, refeições, entre outros, até que chegou a hora de retirar-se para o sono, já que o dia seguinte era um dia comum, com aula e tudo mais.

Lá foi o garoto para o seu quarto, onde pegou seu pijama e andou alguns passos até o banheiro, onde se vestiria, escovaria os dentes e enfim estaria pronto para dormir. Qual não foi sua surpresa quando, entre o som dos poucos carros que passavam pelas ruas e algumas pessoas que conversavam debaixo do prédio, uma melodia familiar começou a tocar. A mesma música da primeira vez, porém uma surpresa muito maior.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte II

Em meio a passos arrastados e o som do chinelo batendo contra o chão, o garoto entrou no banheiro e trancou a porta, como fazia habitualmente. Um outro som que não o dos grilos e árvores lá fora chamou sua atenção. Ao longe, ele ouviu uma música, que parecia vir do prédio atrás do seu.

A melodia lhe era familiar, porém ele estranhamente não conseguia se lembrar de onde a conhecia. Pensou que tipo de pessoa estaria tocando aquela música às três da manhã, mas decidiu por ignorar o fato. Completou o que tinha para fazer no banheiro e voltou ao quarto. Lá, desligou o computador, apagou a luz, deitou-se na cama e rapidamente caiu no sono.

No dia seguinte, o menino do cabelo comprido acordou cedo, e os fatos corriqueiros do cotidiano se sucederam sem nenhuma complicação ou estranhamento. Naquela noite, decidira-se por ficar acordado e checar se era realmente um alarme a tal música. Assim o fez, e às três e pouco da manhã, como no dia anterior, foi ao banheiro. Nada escutou. Concluiu que aquilo devia ter sido um fato isolado, e foi dormir.

No entanto,  a melodia não saía de sua cabeça, e ele precisava lembrar de onde a conhecia ou então entender de onde vinha. Ou, quem sabe, pelo menos escutá-la de novo. Ficou acordado no terceiro dia, assim como nos dois anteriores, até as três da madrugada. Foi ao banheiro como havia feito antes, e lá escutou a música. Mesmo sem conseguir se lembrar e por reconhecer que a música não havia tocado apenas umas vez como antes pensara, o garoto deu-se por satisfeito. Dormiu.

 

Por Gabriel Goes


Perseguição parte I

Estava escuro como era de costume, afinal, a noite já havia caído há muito tempo naquela antiga super quadra sul. Dado o avançado da hora, o mundo lá de fora estava quieto, bastante quieto, sem pedestres em suas calçadas e carros em suas ruas. Os únicos ruídos que cortavam a noite ritmadamente provinham do farfalhar das folhas das árvores e do cricrilar dos grilos.Do lado de cá, o mundo de dentro, protegido por concreto, estava um pouco mais seguro que o de fora.

E dentro de todo esse concreto que, com outros materiais de construção, formava um prédio com seus apartamentos, um deles chamava a atenção justamente por ainda estar iluminado, mesmo com o relógio apontando três horas da madrugada.

E dentro desse apartamento, só uma janela exalava luz: a do quarto do garoto que se abstinha de dormir até aquela hora. Mexia descompromissadamente no computador, quase cochilando ali mesmo, e ainda assim relutava em entregar-se ao sono.

O quarto com a luz acesa não tinha nada de especial, e nem o menino. O quarto tinha alguns livros, um computador, um beliche e alguns armários e estantes. Já o garoto tinha um cabelo comprido e nada mais que chamasse muito a atenção. Decidiu-se por pelo menos aprontar-se para dormir, e dirigiu-se ao banheiro.

 

Por Gabriel Goes