Arquivo da tag: fuga

Saudosista

Ah, é difícil ficar tanto tempo longe de casa e nem se lembrar mais que se tem um lar. Ao mesmo tempo em que se respira novos ares, conhece-se novas coisas, novos lugares, novas paisagens, há aquela tristeza que, por mais que seja rechaçada, insiste em timidamente voltar a cutucar o peito, vez ou outra. É por isso que por mais que por mais que a viagem esteja boa, “o bom filho a casa torna”.

Foi o que eu fiz. Parti, rompi laços que já eram estreitos até demais, e me prendiam quando eu menos esperava, me arrastando por horas e horas a fio para lugares-comuns do meu mundo comum. Subitamente desisti daquilo tudo e vivi meu tempo livre de uma forma nova. Nova, mas tão claustrofóbica quanto a anterior, como rapidamente descobri.

E assim, com o passar dos dias, a tal tristeza veio a me cutucar, coincidindo com a rotina que eminentemente anunciava sua volta iminente. Essa tristeza tímida virou saudade, a saudade se tornou realidade, e a realidade me trouxe aqui mais uma vez para colocar tudo nos conformes e dar início a um novo ciclo que começa agora. E sabe-se lá onde vai parar.

O importante mesmo é que eu estou de volta, lamentando o tempo que perdi, porém reconhecendo as experiências que acumulei para, uma vez mais, recomeçar. Vamos lá.

 

Por Gabriel Goes


Férias

Não há sensação que se equipare com aquela de dormir em um domingo e não ter que acordar cedo em uma segunda. A segunda, que costuma causar depressão e calafrios generalizados, vira feriado como todos os outros dias. Terça é sábado, quinta é domingo, todo dia é dia de não fazer nada ou fazer qualquer coisa que não seja estudar e trabalhar. Faça chuva ou faça sol, os planos não podem ser estragados facilmente como poderiam em um dia comum. Isso acontece porque férias significam despreocupação, e ao menos por alguns dias, desvinculação com tudo que nos causa stress.

Faço aqui, sim, uma apologia à anarquia nas férias: é hora de dormir de madrugada, acordar absurdamente tarde, almoçar fora da hora do almoço, enfim, curtir cada hora do dia, e não torcer para que elas passem mais rápido. Faz mal para nosso organismo? Ele aguenta. Não há caos que seja criado agora que não possa ser contrabalanceado com uma bela dose de ordem quando tudo tiver de voltar ao normal, se é que se quer viver no equilíbrio.

Sim, é hora de procrastinar as tarefas que não foram procrastinadas. É hora de viver o agora e deixar os problemas, por menores que sejam, um pouco de lado, deixá-los para depois. Por mais regrada que seja uma vida, férias são férias. Se tudo isso parece surreal demais, pelo menos deixe sua mente abstrair a rotina um pouco, deixe que esse parco momento de descanso realmente valha a pena. Isso sim você não pode deixar para depois: viva agora, viva as férias!

 

Por Gabriel Goes


Meio dia e?

Como bem se sabe, de acordo com as normas do português correto e com a lógica, a frase “meio dia e meio” está incorreta. O certo seria “meio dia e meia”, sentença na qual está implícita a palavra “hora”, ou seja, o resultado é “meio dia e meia hora”. Dizemos isso quando o relógio marca 12:30, horário vulgarmente conhecido como doze horas e trinta minutos. Até aqui, tudo muito óbvio. Mas e se eu disser que a frase “meio dia e meio” é certa sim, e ainda fornecer argumentos para provar minha assertiva? Pois é o que proponho, observem.

“Meio dia e meio” significa seis horas da tarde. Parece absolutamente sem sentido, mas há explicação. “Meio dia” significa que, se as 24 horas do dia forem divididas pela metade, aquela hora representará o exato meio, na parte do dia, isto é, já se passaram 12 horas desde que o dia começou. E quanto é a metade de 12? 6, é claro. E isso é o que significa o “e meio” – metade do “meio dia”. Somemos, então, o “meio dia” com o seu “e meio”, equação simples que nos fornece a igualdade: 12+6=18. 18 horas passadas do dia nos dizem que são seis horas da tarde (se contarmos a partir do meio dia), justamente como eu havia proposto. E é por isso que novamente afirmo que “meio dia e meio” é uma frase lógica e gramaticalmente certa, se interpretada corretamente.

É um simples devaneio e uma teoria provinda dos momentos mais distantes de viagem da minha mente, e não denota que nada vá ser revolucionado, até porque a única pessoa que usa essa expressão – “meio dia e meio” – sou eu, e com uma frequência baixíssima. A formulação do que proponho aqui é uma mera tentativa de mostrar como nem tudo é o que parece, e que, com um pouco de criatividade e força da mente, nada pode ser convertido em uma verdade absoluta. Todos os dias terão seu “meio dia e meio”: hora bora para colocar a cabeça para funcionar.

 

Por Gabriel Goes


Selvagem – Parte III

Perdido, desnorteado, desorientado, apenas com uma túnica pobre de linho cinzento, Mornon se viu não mais com um elfo. Mas ele sabia que não podia renegar suas origens. Ele tinha instintos, apesar de doces e suaves, aguçadíssimos e treinados para sobrevivência não na selva, mas COM a selva. E assim, ele se levantou em meio à chuva densa que caía e seguiu com os passos mais decididos que um elfo poderia pisar.

Mornon passou a viver em harmonia com a natureza que o cercava. A chuva era sua força para erguer os ombros mesmo sob pressão, o sol era sua luz guia, os animais eram seus amigos mas também seu alimento – sim, Mornon, abdicando de uma parte de suas origens élficas, passou a comer carne, pois ela o fortalecia imensamente -, as plantas seu abrigo, sua energia, seu caminho para o mundo espiritual que não podia nem deveria ser renegado. Ele se deixava levar pelos rios, explorava a profundeza dos lagos. Era um só com o mundo à sua volta.

Ao mesmo tempo, Mornon percebera que não bastava viver em harmonia. Ele precisava sobreviver. E, ao longo de um ano, que passara muito mais lentamente que qualquer outro ano da sua vida, ele aprendeu a construir armas com madeira e pedra lascada, armas rudimentares mas que serviam para a caça ou para eventuais ataques de ladinos. Mornon estava agora no mundo do lado de fora, no mundo real. Além disso, de escamas, cascos e couro construiu uma intrincada armadura que o acompanhava para onde quer que ele fosse. Depois de alguns meses trabalhando, conseguiu adquirir metal suficiente para construir uma espada digna. O metal era só o cabo. A lâmina da espada era de uma pedra semelhante ao cristal, não em sua transparência, mas em sua consistência. Uma espada simples, muito pesada, que Mornon aprendeu a manejar enfrentando lobos e ursos, além de um ou outro guerreiro bêbado nas estradas.

Suas ombreiras de casco já estavam gastas e o couro ligeiramente esfacelado, mas dia após dia, naquele ano árduo, Mornon continuava a andar com passos largos. Para onde? Ele não sabia seu destino, definitivamente não. Talvez fosse apenas caminhar. Talvez fosse descobrir o potencial selvagem que existia dentro de si, como guerreiro que havia se aprimorado através de natação, exercícios, corrida, levantamento de rochas e madeira e certa habilidade com a espada e outras armas, tudo isso aliado com a sensibilidade e os apuradíssimos sentidos dos elfos.

Porém, naquele dia, em que completava 100 anos, Mornon não se considerava mais um elfo, totalmente. Ele havia renegado seu caminho traçado como bardo, adquirido conhecimento sobre coisas que nunca imaginara existir, e aprendido a viver de uma forma muito mais selvagem e estigmatizada que qualquer elfo jamais experienciara. Naquele dia, sabia ele, ele poderia escolher seu nome, quem ele realmente era. Não era mais Mornon. Agora era Aeltahllas, o Cavaleiro da Lâmina Selvagem.

FIM

 

Por Gabriel Goes


Selvagem – Parte II

Foi aí que o feixe circular de luz iluminou o livro e este começou a brilhar intensamente. Palavras douradas começaram a surgir, as páginas farfalharam e uma ventania parecia ter invadido o ambiente, o brilho cegou Mornon, mas ao mesmo tempo o fez enxergar. Enxergar coisas que provavelmente ele não devia: o conhecimento de coisas que estavam há muito esquecidas no mundo élfico, histórias secretas da família real, relatos de lendas que acreditava-se nunca terem ocorrido, e tudo estava vindo com um grande impacto diretamente na mente e no coração de Mornon, até que uma mão larga o puxou pelo ombro e o jogou para fora da pequena sala com um estrondo.

O conhecimento e a sabedoria que habitavam aquele livro novamente se fecharam para as trevas, e não haviam nem bem se fixado na cabeça de Mornon, ou melhor, o jovem elfo não havia se dado conta do que acontecera quando se viu rodeado por pelo menos dez pessoas, membros da alta realeza e guardas do palácio. O olhar que mais lhe assustou foi o mais importante: o rei, pai de Aliaril, o olhava com uma frieza de rasgar o coração. Mornon não sabia o que havia feito, mas sem dúvida conseguira ele enfurecer até o mais sereno dos elfos, e as consequências que estavam por vir seriam muito piores do que ele poderia imaginar.

Mornon tinha, naquele dia, 32 anos. Era muito, muito jovem. Arrastado pelos guardas através das escadarias e pátios e salões do palácio, não esboçou reação. Não sabia o que dizer ou fazer. Todos se encontravam um sepulcral silêncio, que só era quebrado pelos lamentos agônicos do Aliaril, que chorava e tentava, em vão, socar e chutar os guardas e até mesmo seu pai, aos gritos de que Mornon não havia feito aquilo por mal, só para levar um tapa certeiro no rosto, que o trouxe ao mesmo silêncio que envolvia todos na sala.

Mornon, sob julgamento, foi condenado ao exílio espiritual por tempo indeterminado, onde tentariam extrair de sua memória todo o conhecimento milenar adquirido nos alfarrábios perscrutados por sua consciência. Ele foi levado a uma prisão em uma torre de espinhos que rasgava os céus e largado em um calabouço, vigiado todos os dias, em todos os momentos, por guardas tão marcados pela virulência de sua posição social que nem pareciam elfos. 67 anos se passaram e nenhum resultado foi conseguido, em uma das ações mais obscuras da história dos elfos. Em uma manhã decisiva na vida de Mornon, os soberanos decidiram, após mais de um ano de uma discussão, extraditá-lo, ou melhor, bani-lo para sempre dos domínios élficos em todo o mundo.

E assim foi decidido, e assim aconteceu. Com 99 anos de idade, um ano antes de poder decidir seu verdadeiro nome e, essencialmente, seu verdadeiro caminho, Mornon foi levado para os limites da grande floresta que cercava todo o reino élfico, e, sem mais palavra, chutado impiedosamente para o meio da relva farta, até que, através dos encantos dos elfos, não reconhecesse mais onde estava.

FIM DA PARTE II

 

Por Gabriel Goes


Selvagem – Parte I

Inicio hoje uma série de três postagens com uma breve história passada em um reino élfico e no mundo exterior. Um tanto quanto subjetivo, Tolkieniano e desconexo com a realidade. Mas o que seria a realidade em que vivemos sem os momentos que temos para fugir dela? Acredito que esse seja um bom motivo para apresentar a história:

 

Nascido Mornon Fisamasel, por opção da mãe teve seu batismo em um ritual no âmago da floresta, ao lado de um carvalho sagrado. Foi seguindo sua vida normalmente, e ao longo dos estudos, conheceu Aliaril Kasferaeir, jovem que, por um acaso do destino, era herdeiro direto do trono da rainha élfica, ou seja, o príncipe. Acabou por tornar-se íntimo de Aliaril, e muitas vezes, quando não estava estudando ou treinando normalmente, como é inerente à juventude – e pode-se dizer a uma vida toda – élfica, brincava com o amigo príncipe no palácio.

Já era íntimo de todos que lá viviam, inclusive a rainha e o rei, pais de Aliaril, além de muitos outros membros da realeza e amigos da família. A amizade, que era conduzida de maneira cuidadosa no meio social, por envolver grande parte da nobreza élfica e os segredos que lhe são resguardados, chegou a um ponto em que Mornon, quando seu amigo Aliaril tinha que cumprir alguma obrigação de futuro príncipe – como treinamentos especiais – transitava sozinho e livremente pelo palácio élfico.

Os riscos da amizade tão cuidadosamente conduzida até então parecem não ter sido levados em conta em fatídica tarde. Aliaril, como era costumeiro, teve de ir receber uma lição extra em história antiga da família real com um dos mestres mais famosos de todo o reino, e Mornon, que morava longe, ficou lá, no pátio do palácio, brincando. O garoto tinha o estranho – para elfos – hábito de fingir que era um guerreiro, apesar de sempre ser repreendido pela mãe por seus gestos com a espada. A mãe preferia que ele fosse um tocador de harpa e compusesse lindas canções.

Pois bem, na tal tarde, Mornon, sozinho, chamou por alguém com quem pudesse conversar ou se divertir, mas sua voz ecoou sem resposta pelo saguão. Com a curiosidade habitual de um jovem que havia aprendido muito mas sabia que ainda tinha muito o que aprender, Mornon saiu a andar pelo palácio, e, entregando-se aos seus sensos de exploração, vasculhou salas, quartos e os mais diversos cômodos que jamais teria pensado em encontrar. Porém, ao passar por uma sala estranhamente escura, uma fechadura caída no chão chamou sua atenção. O jovem não resistiu e submergiu nas trevas. Encontrou uma porta semi-aberta, com o cadeado jazendo ao chão. Entrou.

Um fino feixe de luz iluminava um livro maior que qualquer um que Mornon já tinha visto. O livro era ricamente decorado com adornos em um ouro de extrema pureza, e sua capa era feita de uma madeira que parecia não ter igual na densa e extensa floresta que cercava todo o reino élfico. Mornon, cuidadosamente, para não produzir nenhum ruído, botou suas mãos sobre os alfarrábios antigos e os abriu. As páginas já estavam carcomidas pelas traças que perpassavam eras alojadas no livro. Mas um detalhe chamava mais atenção: todas estavam em branco.

FIM DA PARTE I

 

Por Gabriel Goes