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Efêmera política XIX

O homem muito alto e magro, com cabelos pretos que iam até sua cintura, um rosto liso sem nenhum fio de barba que fosse e uma pele de alvura impressionante começou a falar. Seus olhos, de cor amarelada, remexiam-se loucamente nas órbitas e a língua saltava da boca que pronunciava, incessantemente, palavras que mais pareciam grunhidos, ora estridentes, ora roucos.

Thales estava imóvel, quase lançado ao chão em sua impotência. De relance, pode vislumbrar Petro, Ludvig e Klaus matando alguns guerreiros opositores antes de se virarem para observar o comandante falando. Como uma flecha que atravessava de uma só vez o peito desprotegido de Thales, a verdade veio.

O inimigo de longos cabelos negros se apresentou como Kh’lesh e como aquele que enunciaria toda a história como ela de fato se desenrolara. Ele explicou que tudo aquilo que agora estava acontecendo advinha da manobra política usada por sua nação para atrair e matar Thralius, alguns meses antes, ao contrário do que o filho deste último pensava, ou seja, que tudo não passara de uma tristíssima coincidência dos campos de batalha.

Ademais, Kh’lesh disse que Sarfos havia se apresentado como comandante das forças reais na ausência de Thales, que padecera de um “infortúnio” às vésperas de combater. O traidor ainda propusera uma aliança, para que então, junto a Kh’lesh, tomasse o castelo e pudesse ter o poder para si, mais uma vez jogando por terra a visão ao menos um pouco nobre que ele expusera para Thales no momento de sua partida. O resultado de traição sobre traição não poderia ter sido outro senão a morte sangrenta que Sarfos encontrara no estandarte de seus inimigos.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XVIII

O tempo naquela tarde parecia criar um perfeito desenho da situação em que Thales se encontrava. O céu estava totalmente escuro, coberto por terríveis nuvens negras, e um pequeno feixe de luz cortava as trevas, iluminando precisamente o caminho percorrido pelo filho de Thralius. Completamente livre do torpor que lhe infligira tanto sofrimento nas últimas horas, montado em seu cavalo, ele era um com o vento e um contra o mundo naquele instante.

Rapidamente, chegou ao local onde a batalha se desenrolava e com uma velocidade ainda maior a sensação de náusea e violenta dominação de seus músculos e pensamentos por uma força maior que ele voltou com um simples olhar para o campo outrora verde. Mas o problema não era o sangue que tornava aquelas pradarias escarlates, e sim o estandarte do inimigo.

O estandarte em forma de lança era exatamente o expoente do máximo terror que Thales poderia sentir, pois no lugar da bandeira havia um corpo empalado: Sarfos, com a lâmina lhe atravessando as entranhas, numa escultura distorcida, banhada de sangue que jorrava da cabeça disforme, com a mandíbula quebrada, de onde surgia uma ponta afiada.

O olhar atônito, perplexo, embasbacado e extremamente aterrorizado de Thales logo chamou a atenção do comandante inimigo, que rompeu o som repetitivo de rasgar de corpos e tilintar de ferro contra ferro com uma sonora risada, a qual fez com que momentaneamente o conflito fosse interrompido para um breve discurso –  aquele que traria a verdade que o filho de Thralius McInval desejaria nunca ter que ter ouvido.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XVII

Um bom tempo se passou. Mas Thales não sabia quanto, deitado em sua cama sem poder expressar seus sentimentos ou simplesmente agir. Porém, com o tempo, foram se dissipando também os efeitos da droga que Sarfos havia posto no vinho. Thales percebeu que a intenção do companheiro não era mata-lo, como antes pensara.

Aos poucos, o filho do rei foi retomando seus movimentos, mexendo os braços que não formigavam mais, pensando mais claramente e, enfim, postando-se de pé. Dirigiu-se a uma bacia com água que ficava em seu quarto e lavou o rosto e partes do corpo, em uma espécie de ritual para que o mal que lhe fora afligido saísse de uma vez por todas dali. O chão continuava muito sujo, e agora fedia, mas Thales não tinha tempo para isso.

No início ainda cambaleante, foi ziguezagueando pelos corredores do castelo, desceu escadas e finalmente chegou ao depósito, que, para sua decepção, estava trancado. Juntou as forças que rapidamente voltavam e empurrou uma enorme estátua de pedra contra a grade de madeira, fazendo com que esta se quebrasse e ele pudesse passar por entre uma fresta que levava aos armamentos e equipamentos.

Com o sangue correndo cada vez mais rápido nas veias, Thales só pensava que tinha que chegar logo ao front para descobrir como a situação se desenrolara até então, com Sarfos, seguido por Petro, Klaus e Ludvig, partindo em uma cruzada sem ele. Totalmente equipado, correu até o estábulo, e, sem tempo para selar um cavalo, simplesmente montou e partiu a galope para a terrível onda de caos que contra ele se agigantava.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XVI

Em vão tentava se levantar para poder voltar ao seu cargo militar – a força da doença nele impregnada o subjugava com facilidade. Seus braços e pernas formigavam e mal obedeciam aos comandos do cérebro, a mente estava bastante confusa e o estômago estava em nó. Thales não conseguia, em meio aos seus devaneios, parar de se perguntar como aquilo poderia ter acontecido em uma hora tão crucial.

Pois logo ele teve a resposta que desejava. E ela não era nada agradável. Andando na frente, Sarfos entrou no quarto, já preparado para a batalha, acompanhado de perto por Petro, Klaus e Ludvig, que vinham logo atrás, lado a lado. O primeiro começou a falar. Veneno saía impetuosamente de sua boca. Ele confirmou o que Thales mais temia: a substância que havia trazido aquela enfermidade tinha sido posta no vinho com o qual os dois fizeram o brinde algumas horas antes.

O pior não era isso – era o motivo de Sarfos para essa grande traição. A mais pura inveja do filho do rei ser mais adorado, querido e bem dotado de conhecimentos, intelectual e militarmente. Agora, o traidor comandaria o exército a uma esmagadora vitória, e finalmente teria o reconhecimento que merecia, enquanto o traído ficava relegado ao triste confinamento de sua cama.

Para espanto de Thales, seus outros amigos (se é que ainda o eram), não só estavam cientes do que se passava como concordavam com Sarfos, assentindo repetidamente com a cabeça, porém com uma expressão triste em seus rostos. O filho de Thralius tentou se debater, argumentar, gritar, esboçar qualquer reação que fosse, mas só conseguiu emitir um grunhido ininteligível enquanto seu algoz tomava o rumo da pretensa glória seguido por aqueles que um dia chamara de companheiros.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XV

Logo que o pronunciamento acabou, Thales chamou seus colegas governantes para que tomassem posse em seus postos de comandantes de batalhões e organizassem devidamente as estratégias a serem usadas na guerra que se seguiria logo mais. No entanto, antes de se equipar, Thales viu Sarfos sair antes que ele terminasse de falar e seguiu-o até seus aposentos.

Lá chegando, quis saber o que perturbava a mente do amigo, ao que Sarfos respondeu com um sorriso e uma afirmação de que tudo estava bem. Este convidou Thales para um brinde ao belo discurso com uma taça de vinho. Certo de que estava tudo bem, o filho do rei aceitou, e bebeu de seu cálice, porém com um pouco de pressa para que pudesse assumir logo seu posto de general.

Os dois então partiram juntos para o depósito de armas e armaduras do castelo, onde uma fila enorme já se formava – obviamente, se tratava do exército real. Contudo, no meio do trajeto, Thales disse para seu companheiro seguir em frente sem ele, pois estava passando mal, então antes retornaria uma vez mais ao seu quarto antes de comandar naquela batalha.

Sarfos assentiu e foi se preparar enquanto o amigo retornava pela trilha que haviam tomado. Quando o ex-príncipe chegou aonde desejava, só teve forças restantes para vomitar tudo que havia comido nos últimos dias no chão de pedra. Ficou jogado, ajoelhado por alguns minutos, depois se arrastou até sua cama, e nela se deitou, tomado por uma enfermidade com a qual, sem dúvidas, não contava.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XIV

A apreensão no rosto dos cinco que ali começavam seu discurso era visível, e por isso a multidão começou a se agitar, traçando perspectivas cada vez mais trágicas sobre o que se seguiria. E as profecias se concretizaram quando Thales trouxe as más novas: seus mensageiros haviam localizado um grupo que começava a se ajuntar em um exército hostil na fronteira noroeste, e muito provavelmente atacaria em breve.

Apenas esse início de fala foi suficiente para que o povo entrasse em pânico e, como é comum em uma turba que recebe um impacto tão grande, principalmente se vindo de fora, iniciou-se uma manifestação geral de terror, a qual havia partido inicialmente de poucos indivíduos. Quando Sarfos pensou em acalmar a situação tomando a palavra, Thales novamente se antecipou.

Em frases que muito provavelmente deixariam seu pai orgulhoso, ele foi capaz de controlar aquela massa que já fugia do seu comportamento normal. Logo em seguida, soprou esperança no coração de cada um, a esperança de que realmente, com a força que aquela nação tinha, e com seus bravos homens, tudo ficaria bem.

Quando todos na praça se acalmaram e começaram a distribuir abraços e enunciar sentenças que continham em si toda a inspiração das palavras de Thales, este suspirou aliviado e deu um sorriso muito sincero e aliviado para seu companheiro Petro, que estava logo ao seu lado e retribuiu com um olhar de aprovação. Porém, às suas costas, Sarfos não parecia muito feliz com o que acabara de se desenrolar.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XIII

Os mensageiros que haviam sido tão úteis foram mandados para um merecido descanso, e novos homens naquela função foram convocados em seu lugar, e já tinham uma tarefa crucial para o bom andamento e o progresso da nação: conclamar a população a se reunir na praça, onde usualmente aconteciam os pronunciamentos reais, para ouvir mais um deles, talvez o mais importante da história daquele reino.

Os habitantes não sabiam o que estava se passando, e calmamente se dirigiram das suas casas e pequenas fazendas até o ponto de convergência. Alguns já comentavam do que aquilo podia se tratar: talvez Thales tivesse arranjado uma bela mulher para desposar, ou até mesmo um dos outros governantes… Hipóteses não faltavam na boca do povo.

Porém pouquíssimos dos que ali estavam reunidos conjecturavam que a franca conversa vinda de cima, pronta para acontecer dali a pouco, tratava de um assunto muito mais sério. Depois de algumas horas o número de pessoas que aguardavam na praça foi considerado satisfatório e os soberanos concluíram que era hora de começar.

Os cinco apareceram para o público de uma vez, do alto daquela pequena torre que era utilizada como uma espécie de palanque. Por um momento hesitaram, não sabiam quem deveria começar. Então Thales, lembrando-se das belas palavras que seu pai costumava pronunciar, tomou a voz, sua e de seus amigos, para transmitir as tão esperadas informações.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XII

Como isso fora há alguns dias, o grupo decidira por ficar lá para averiguar melhor a situação. Armaram um silencioso acampamento em uma colina de onde não podiam ser vistos, porém teriam uma ótima perspectiva do que se passava lá embaixo. Estarrecidos, observaram as forças inimigas crescerem exponencialmente dia após dia.

Quando definitivamente puderam confirmar a natureza hostil daquele acampamento, optaram por imediatamente retornar ao castelo e informar os governantes. Desarmaram seus pequenos “aposentos” improvisados, desamarraram os cavalos de árvores próximas e bateram em retirada.

Com informações em mente, Thales, Sarfos, Ludvig, Klaus e Petro agradeceram aos mensageiros que foram perspicazes em perceber aquele acampamento como uma força inimiga em potencial e rápidos para trazer as notícias aos ouvidos daqueles a quem elas mais interessavam.

Mas não era como se aquilo não fosse de importância para a população. Pelo contrário, logo depois dos soberanos, o povo deveria ser alertado com urgência inadiável. Como o discurso que aqueles estavam redigindo ainda não se encontrava pronto – aliás, nem metade dele havia sido pensada e transcrita ainda – Thales convocou os amigos para um pronunciamento de improviso.

Por Gabriel Goes


Efêmera política XI

Chegando lá, Thales, Klaus, Ludvig, Sarfos e Petro – o conselho que administrava o reino – começaram a deliberar sobre como a notícia deveria ser apresentada aos seus comandados em geral. Resolveram por enunciar, todos juntos, como forma de demonstrar união, um discurso cuidadosamente elaborado. Logo em seguida, começaram a compô-lo.

Como se já não bastasse a visão daquele espião morto na floresta, mais um tremendo impacto estava prestes a atingir o reino já não mais calmo. Enquanto todos, do lado de dentro do castelo, em seus aposentos, estavam compenetrados em escrever o discurso que seria apresentado à população, do lado de fora a situação era outra.

Mensageiros a cavalo chegaram a galope nos portões da fortaleza, levantando poeira pela estrada de terra. Atabalhoados, desmontaram de suas selas e requereram passagem para adentrar a morada real. Com permissão garantida, trataram de comparecer aos aposentos dos governantes o mais rápido possível, derrubando uma ou duas estátuas, sem no entanto quebrá-las, pelo caminho.

Com seu destino em vista, os esbaforidos homens já começaram a gritar que não traziam notícias boas. Thales logo abriu a porta com um safanão, pronto para encarar a verdade: a guerra havia chegado. E foi exatamente isso que os mensageiros retrataram: em uma de suas viagens de rotina, identificaram um estranho grupo acampando do alto de uma colina. Quando chegaram mais perto para observar, não se tratava de um simples aglomerado de pessoas, e sim de um pequeno exército em formação.

Por Gabriel Goes


Efêmera política X

Os governantes, perplexos, se aproximaram do corpo recém-alvejado. Tratava-se de um homem por volta de seus trinta anos, com uma túnica preta que só não cobria seu rosto e armaduras leves. Ele estava munido apenas de uma espada curta e algumas facas de arremesso, além de, impressionantemente, rolos de pergaminho.

Diante daquele que com convicção poderia ser tratado como um mensageiro inimigo, os amigos, em seu próspero dia de caça, não sabiam o que fazer. Se aquilo realmente se tratava de uma ameaça externa muito maior, era a última coisa da qual o reino, há pouco tempo recuperado, precisava.

No entanto, mesmo tentando afastar essa possibilidade de sua mente, Thales sabia que todos deveriam estar preparados para a eventualidade de um conflito com quem quer que fosse. E isso incluía não só seus amigos, mas também os exércitos reais e a população.

Decidira-se, naquele instante, por informar ao povo o que havia acontecido quando retornasse da caçada. Deixou claras as suas intenções aos seus companheiros de caça e governo e o grupo optou por voltar imediatamente ao castelo.

Por Gabriel Goes